Inteligência Salínica, um estudo exploratório
Muito tem se falado, pesquisado e discutido sobre a inteligência emocional, que representaria um avanço perante formas canônicas de inteligência, de roupagem lógico-matemática e sabidamente engendradas por uma ideologia cartesiana, tim-maio-racionalista¹, hegemônico-capitalista e tudo mais que há de ruim.
Outro conjunto de habilidades de primeira importância para o sucesso ou fracasso de um indivíduo na vida adulta, entretanto, têm sido negligenciado pela literatura acadêmica. Esse conjunto de habilidades reside em operar comportamental, social, afetiva e cognitivamente sobre uma tarefa básica da vida contemporânea: a decisão de quanto sal empregar em determinada receita.
De maneira puramente provisória, interina, até que se constructa melhor o constructo, nomearemos² tal dimensão como inteligência salínica, em consonância à nomenclatura de suas primas inteligências verbal, espacial, naturalista, existencial, cosmológica, corporal, musical, James Brown etc, etc. A crítica posterior ao presente trabalho poderá argumentar, dotada de certo grau de razão, que tratamos aqui de uma habilidade mais genérica do que se propõe: a capacidade de emitir julgamentos quantitativos precisos sobre a condimentação do alimento, independentemente do tempero. Como pretendemos demonstrar em momento oportuno, entretanto, acreditamos contar com indícios o bastante de que a inteligência salínica - se aceitamos interinamente o termo - precede e antecipa histórica, psicológica e filogeneticamente a ulterior habilidade de, perdoem-nos o coloquialismo (sério, foi mal mesmo gente), acertar a mão no tempero.
Acometido por terrível acidente salino-culinário com uma panela de arroz, que coincidiu com o abandono temporário de um texto bem ruim sobre psicometria, uma luz se fez nas trevas obscuras do eu-lírico do autor, a qual é compartilhada no presente texto. Nutrido, pois, de profunda ignorância no campo da avaliação psicológica, tal como a autora que lia há pouco, proponho-me a salgada tarefa de propor uma polposa questão de estudo. Além disso, o empreendimento conta com a vantagem de possibilitar a perda de tempo útil para o estudo ou atividades mais produtivas como lavar a montanha de roupas que aguarda ostensivamente em sua cadeira, como se pessoa fosse.
Fato é que a habilidade cotidiana de supor a exata quantidade de sal exigida por uma panela de comida esconde fenômenos ainda inexplorados pela psicologia científica. Sabe-se que uma grande variedade de métodos salino-decisivos pode ser empregada pela pessoa humana, mas gostaríamos de propor aqui uma primeira organização em dois grandes grupos: (1) aqueles que preferem o uso de medidas objetivas de eficácia comprovada descritas em receitas ou por pessoas de referência e (2) aqueles que, acertadamente ou não, preferem julgar intuitivamente a quantidade de sal necessária.
Essa tipificação de personalidades-salínicas, ainda que não se pretenda extensiva, nos permite algumas perguntas iniciais. Que processos psicológicos serão empregados por cada um dos tipos acima descritos? Um mesmo indivíduo poderá transitar entre os polos do continuum de salinização em função do contexto ou esses representam traços estáveis ao longo da vida? Qual a relação entre a inteligência e personalidades salínicas? Pode-se afirmar que uma ou outra é afetiva e cognitivamente mais eficaz?
Do ponto de vista da psicologia social, por sua vez, cabe-nos perguntar sobre a relação indivíduo-sociedade no contexto de salinização de pratos. Qual a influência dos grupos de pertença de um indivíduo em seu julgamento do que diabos seria uma “pitada de sal”? Haverá sempre rígidas normas grupais compartilhadas por seus membros ou diferentes grupos podem apresentar diferentes modalidades de salinização?
Seja do ponto de vista das diferenças individuais, desenvolvimento cognitivo ou relações interpessoais e intergrupais, portanto, a inteligência salínica é um tema que se impõe na contemporaneidade e do qual a ciência psicológica não deveria se furtar. O presente estudo, ainda que conte com a grave, quase vergonhosa, limitação de não apresentar quaisquer dados empíricos que fundamentem as hipóteses aqui apresentadas, representa a proposta de, mais do que uma dimensão complexa e multicausal, um campo de estudo interdisciplinar no qual cada especialidade do vasto campo de conhecimento psicológico possa elaborar sua contribuição.
Se, a partir da psicometria, pergunta-se sobre a distribuição desigual, ainda que normal, da inteligência salínica em dado grupo populacional e, a partir da neuropsicologia, sobre a interface entre cloreto de sódio e demais neurotransmissores, a psicanálise, por exemplo, é convocada a explorar os significados últimos que fundamentam a ação salinizadora do sujeito sobre sua própria ingestão. Exceção, é claro, se faz à psicologia jurídica, que não tem muito a contribuir no assunto (limites, né?).
Questão subjacente à proposta, portanto, é a comunhão pacífica e harmoniosa entre os diferentes saberes, fazeres e cozinhares psicológicos. Além disso, trata-se, em última instância e na verdade, em um período turbulento do financiamento público à pesquisa científica brasileira, da luta pela implantação de mais um campo de dissimulada disputa de poder nos departamentos de psicologia.
¹. Nenhuma crítica é cabível, é claro, ao mestre Tim Maia, mas putaquepariu, galera, que papo ruim de read the book, the only book da porra.
². A fim de evitar desafetos, o autor - eu - e seu/meu alter-ego-proto-acadêmico opta por se identificar no plural.
Artigo submetido pelo autor em 04/09/2016 e aceito instantaneamente já que ele é o dono da bola, do blog e de si-mesmo (acredita-se).