Circuito Cume da Jamanta - Reserva da Juatinga (RJ)
Há alguns anos, pratico trekking e venho conhecendo mais sobre práticas, técnicas, roteiros e equipamentos. O circuito que relato aqui é especialmente interessante para mim por ter sido um dos mais gostosos e difíceis que fiz até agora. O relato também foi postado no Mochileiros.com, é possível comentar por lá.
O circuito é muito exigente e foi feito em dupla em janeiro de 2021 por duas pessoas relativamente experientes e relativamente preparadas. Quer dizer, foi parcialmente feito, porque houve uma pequena trapaça no final e passamos um dia descansando em Martim de Sá ao invés de fazer à pé o trecho até Ponta Negra e vila Oratório de volta.
O relato foi escrito por mim e o Jhonatan e o planejamento foi baseado principalmente em duas tracklogs presentes no Wikiloc: (1) a do Luís Felipe (Circuito Mamanguá (Via Jamanta) x Juatinga (com Farol da Juatinga)) e (2) a do Angelone (Circuito Cumes da Juatinga).
Em contato por e-mail, o Luís Felipe sugeriu que registrássemos pontos e informações que pudessem complementar a track. Como não vimos tanto como acrescentar informação, visto que ela já está bastante completa, achamos que nossa contribuição poderia ser um relato mais detalhado com nosso ponto de vista sobre o trajeto. Esperamos que possa ajudar a quem faça o caminho no futuro.
Vale a pena mencionar desde já que o passo do Luís Felipe é completamente absurdo e não serve tanto como parâmetro de comparação a não ser que você tenha um preparo físico excelente ou sobrehumano. O que, percebi a duras pe(r)nas, não é exatamente o meu caso. Uma ótima ideia para seres humanos normais é fazer o trajeto colocando mais dias de descanso e curtição no caminho. É o que pretendemos fazer na próxima vez.
Visão geral
O circuito é extremamente variado em paisagem, vegetação, variação de altitude, proximidade com o meio selvagem/urbano e dificuldade de terreno. O único aspecto constante é que tudo é maravilhoso e vale a pena conhecer. O trajeto começa e termina na praia do Sono e dá a volta em toda a reserva da Juatinga, passando pelo saco do Mamanguá, enseada da Cajaíba, Martim de Sá, Cairuçu das Pedras e Ponta Negra, nessa ordem. Pode ser dividido em duas partes bastante diferentes entre si:
-
Subida e descida do Cume da Pedra da Jamanta
É sem dúvidas o trecho mais difícil e que justifica a tracklog estar (corretamente) assinalada como “só para experientes” no Wikiloc. Envolve uma subida e uma descida íngremes de 1.092m, com muito vara mato e navegação dificultada pela vegetação. O uso de GPS é essencial e o sinal pega mal nas matas que ocupam boa parte do caminho, pelo menos usando o celular como fizemos.
Os relatos do Luís Felipe e Angelone são muito claros em relação a isso, mas ainda assim ficamos surpresos com a dificuldade. O começo da descida é ainda mais difícil, pois você precisa vencer a vegetação em uma descida técnica por pedras e sem conseguir enxergar muito bem o que tem à frente (e abaixo). Descobrimos tardiamente que seria muito bom ter levado luvas e alguma jaqueta ou blusa mais grossa, pois terminamos o trecho com muitos cortes nas mãos e braços. Um facão também pode ser de grande ajuda.
O trecho pode ser evitado fazendo um caminho bastante mais plano (ainda que também difícil e sem trilhas marcadas) encontrada na track do Angelone ou, essa sim uma opção mais fácil, pegando um barco de Paraty-Mirim e iniciando o circuito na praia do Cruzeiro.
-
Restante do circuito
Ainda descendo do cume e aproximando da Cachoeira do Rio Grande você encontra uma trilha larga e muito bem marcada. A partir desse ponto, se retorna à civilização e põe-se fim ao rasgar mato no peito e checar o GPS o tempo todo. Durante todo o restante do circuito, para o bem e para o mal, as trilhas são nítidas e usadas pela população local e turistas.
Há ainda dois trechos exigentes, entretanto (assinaladas pelas setas amarelas na imagem abaixo. Uma subida intensa com 428m de elevação entre a praia do Engenho e a Praia Grande de Cajaíba e outra mais dura ainda com 550m de altura entre Cairuçu das Pedras e Ponta Negra. Por isso, fazer tudo em dias seguidos pode ser bastante exaustivo. Soma-se a isso a beleza, malemolência e deliciosidade das praias no caminho e você tem bons motivos para incluir alguns dias de descanso no roteiro.
Em todo esse trecho mais urbano você encontra restaurantes no caminho, o que pode aliviar bastante o peso que se carrega nas mochilas. Ficamos surpresos em descobrir que na maior parte dos locais, inclusive em Martim de Sá, onde não chega energia elétrica ou sinal de celular, é possível pagar com cartão. Mas, claro, sempre convém levar dinheiro em espécie para garantir. Por falar em celular, é possível conseguir rede aqui e ali, mas em geral de forma bastante precária e intermitente.
O relato
Dia 0 – Viagem de carro BH – Vila Oratório
Como partimos de Belo Horizonte (a mais de 600 km de distância), descobrimos que nossa ingênua ideia inicial de fazer a viagem de carro e começar a trilha no mesmo dia era completamente descabida e infundada. Ainda bem, porque foi melhor assim.
Saímos de BH de madrugada, por volta de 3h e chegamos por volta de 16h na Vila Oratório, contando com o tempo perdido errando o caminho (vocês sabiam que Laranjeiras é o nome do condomínio que dificulta a entrada à Vila Oratório E o nome de um bairro do Rio de Janeiro, capital?). Deixamos o carro em um estacionamento terreno baldio de um local que nos cobrou R$ 25,00 a diária e pegamos a trilha para a Praia do Sono, onde acampamos por R$ 40,00/pessoa.
Dia 1 – Metade da subida ao Cume da Jamanta
Por algum motivo que hoje nos escapa à compreensão, julgamos que poderíamos dedicar a manhã do primeiro dia para um delicioso banho de mar na Praia do Sono e assim fizemos. O resultado foi conseguir chegar apenas em uma espécie de clareira aos 480m de altitude que as tracklogs carinhosamente chamam de área de camping.
O caminho começa suave, mas aos poucos se torna uma subida bastante íngreme, em mata fechada e os trechos com trilha vão se tornando cada vez mais raros até sumirem completamente. Aqui você começa a se questionar sobre suas escolhas de vida, se lembra das pessoas nadando alegre e preguiçosamente na praia do Sono, mas toca o barco e a caminhada.
As muitas plantas com espinhos começam a dar as caras e vão nos acompanhar durante toda a subida e descida da Pedra da Jamanta. Também fomos introduzidos aos cipozinhos da região. Inofensivos à primeira vista, vão se mostrando um obstáculo insistente que acaba reduzindo bastante o ritmo de caminhada. É difícil representar isso em uma foto, mas segue uma tentativa abaixo. Essa é parte significativa do “visual” do primeiro e segundo dia.
Chegamos na clareira no fim da tarde e decidimos montar acampamento por ali mesmo. Isso coincidiu com o início da chuva e por isso improvisamos um teto com uma das tarps que acabou servindo para coletar a água que caia. Insight bom que o Jhonatan teve ao ver a água acumulando em nossa gambiarra e que evitou que tivéssemos que passar por outro vara mato para coletar água de um riacho, em um ponto marcado nas tracks. A água foi o bastante para cozinhar e hidratar à noite, mas admito que durou menos do que imaginávamos na subida ao cume no dia seguinte.
Dia 2 – Cume da Jamanta e acampamento na toca dos caçadores
O segundo dia já começou com subida intensa, mas, para nossa surpresa, logo logo encontra-se uma trilha bem marcada que facilita muito a ascensão. Sem as árvores e cipós no caminho, o fôlego é o único obstáculo. A track do Luís Felipe inclui um ponto muito útil, mas, como ele mesmo descreveu, muito desgastante de coleta de água próximo ao cume. Chegamos lá já desidratados e administrando as últimas gotas do dia anterior.
O cume da Jamanta, como era de se esperar, é sensacional, com vista para a Praia do Sono, Ponta Negra, Saco do Mamanguá e até a região onde fica Martim de Sá e Cairuçu das Pedras. Com sol escaldante e sabendo que ainda tínhamos muito chão pela frente, acabamos não ficando tanto tempo ali. Descansamos um pouco, conseguimos pegar um pouco de sinal, que foi útil para baixar a tracklog no segundo celular após o GPS que levamos nos deixar na mão.
O início da descida, como mencionado, é um absurdo. Uma descida íngreme pelas pedras cobertas por um samambaial denso e recheado de capim navalha esporadicamente. É algo que você não deseja para ninguém, sabe? Felizmente, esse calvário não é tão extenso e logo dá lugar a uma descida intensa, mas com vegetação espaçada e bons trechos com trilha.
Nesse dia, também não rendemos tanto e acampamos em frente à toca dos caçadores, local bom para acampamento e próximo do rio. Administrar durante a noite as mochilas acampando com redes é sempre um desafio. Dormir com elas na rede é um estorvo e deixar no chão ou em árvores traz o risco de que molhem caso chova. A toca pareceu perfeita para isso, pois poderíamos deixar as mochilas em segurança e dormir nas redes armadas ali por perto. O raciocínio se mostrou um erro grave quando, em meio ao temporal que caiu de madrugada, fui buscar algo na mochila e vi elas embaixo de uma “goteira” que mais parecia uma minicachoeira.
Por falar em caçadores, uma preocupação constante no segundo dia foram as armadilhas descritas pelo Angelone, que conta inclusive em seu relato que um amigo quase tomou um tiro de uma delas, acionada sem querer. Por sorte, não encontramos nenhuma armadilha, mas vale registrar o aviso. A toca continha algumas garrafas e objetos que indicam que continua sendo usada, por isso acreditamos que o risco ainda existe.
Dia 3 – Caminhada até a praia do Cruzeiro
No dia seguinte, após nos perdermos um pouco (por que não?), descemos seguindo a tracklog até encontrar uma trilha ampla e muito bem marcada que praticamente dispensava o uso do GPS. Não demorou muito para chegarmos na Cachoeira do Rio Grande, com uma árvore imensa tombada sobre o rio. Local bom de descanso e que faz parte da trilha: você precisa cruzar o rio para seguir o caminho pelas praias.
Nesse dia, pegamos mais leve que nos anteriores: nadamos e conversamos com um local na cachoeira que nos disse que a subida para o cume é bem melhor partindo de Ponta Negra. Chegamos na comunidade do Cruzeiro ainda cedo, por volta de 15h, mas paramos para almoçar um peixe muito bem preparado em um restaurante (por que não?), por R$ 30,0 o PF, e acabamos decidindo acampar por ali mesmo.
Aqui fica evidente a completa desproporcionalidade com o ritmo de caminhada do Luís Felipe, nosso guia astral virtual. Se você ler o relato dele, vai ver que ele amanhece no cume da Jamanta e simplesmente dá toda a volta pela Cajaíba e dorme em Martim de Sá no mesmo dia. Um brinde à saúde desse rapaz.
A praia do Cruzeiro é um lugar simpático e acolhedor. Acampamos no camping do Seu Orlando, senhor nascido e criado na região e hoje ajudado pelo filho Jaime. Orlando teve alguns AVCs no ano passado e por isso conversa um tanto devagar. Mas foi ir dando corda que a conversa foi longe. Saímos de lá no dia seguinte incumbidos de levar um abraço seu para dona Dica, sua prima, que tem um restaurante na Praia Grande de Cajaíba.
Da praia do Cruzeiro você pode fazer uma trilha até o alto da pedra do Pão de Açúcar, com vista para todo o Saco do Mamanguá, mas acabamos preferindo poupar as energias. Outra opção que nos contaram é alugar um Caiaque e remar até o mangue. Enfim, é um lugar que merece mais tempo em uma próxima vez.
Dia 4 – Cruzeiro – Martim de Sá
Caminhamos muito nesse dia, expiando os pecados do dia anterior. A caminhada começa leve, mas esquisita. A trilha, agora na maior parte pavimentada de concreto, serpenteia entre mansões até a praia do Engenho. Literalmente “entre” em alguns casos, como um em que a trilha termina na praia e nós, confusos, fomos guiados por uma funcionária da casa, atravessamos a área de serviço e fomos guiados a continuar a trilha que seguia pelos fundos. Aparentemente os magnatas que se apossaram dessas praias não tem muito pudor em se apropriar também da trilha que liga as comunidades.
Após a praia do Engenho, a brincadeira começa a ficar séria e o caminho tutelado dá lugar a uma trilha bem marcada e faz uma subida longa e inclinada atingindo 480 de altitude e culminando na Praia Grande de Cajaíba. Chegamos lá exauridos e fizemos uma longa pausa para almoço no restaurante da dona Dica, entregando o abraço-encomenda enviado pelo Sr. Orlando.
O relato do Luís Felipe já anuncia isso e pudemos verificar de fato: a enseada da Cajaíba é a parte “pop” da reserva. Já na praia grande encontramos vários barcos de passeio, algumas lanchas opulentas e uma barulhenta turma de jetskizeiros. Haja paciência.
Para não ficar só no aspecto negativo, vale mencionar que há também praias tranquilas e comunidades mais tradicionais e interessantes como Toca do Carro, Itanema, Calhaus e IItaoca. As partes mais baladas e turísticas ficam no início e no final da enseada: Praia Grande e Pouso da Cajaíba.
Chegamos no Pouso por volta de 17h e após um período para descanso e reflexão, decidimos seguir no mesmo dia para Martim de Sá. Sabíamos pela leitura dos relatos que a trilha envolve uma subida longa, mas suave, e uma moradora local confirmou que o caminho é tranquilo e usado com frequência. De fato, sem grandes dificuldades, demoramos cerca de 1h40 e montamos acampamento já em Martim de Sá.
Dia 5 – Martim de Sá e só
O planejamento inicial desse dia era seguir a trilha para Ponta Negra / Praia do Sono, vencendo um novo morro de 550m de altura logo após Caiuruçu das Pedras, mas, sinceramente, eu não tinha condições para isso. A exaustão acumulada dos dias anteriores já havia reduzido muito o rendimento na trilha e o ritmo de caminhada nessas condições seria um pouco mais lento que o de uma lesma. Como só tínhamos mais um dia de viagem, acabamos decidindo ficar por ali mesmo e pegar um barco no dia seguinte.
A descrição do site da reserva é um ótimo resumo sobre a praia:
“Martim de Sá é (…) habitada por apenas um núcleo familiar caiçara, a família dos Remédios. O patriarca é o Sr. Maneco, simpático caiçara que recepciona os turistas de todo Brasil atraídos por uma praia de beleza rara, rodeada pela Mata Atlântica. Sua esposa e filhos oferecem refeições, bolos e pastéis durante a temporada turística”.
Dia de descanso em Martim de Sá, de preguiça e nadar na praia. O único arrependimento foi não poder ter ficado mais dias ali. De lá, há trilhas para o Poção (um poção delícia de água doce, pelo que nos contaram), o Pico do Miranda, Cairuçu das Pedras, praia da Sumaca e o Farol na Ponta da Juatinga. Afinal, acabamos fazendo um total de nenhuma dessas atividades por motivos de cansaço e preguiça, mas estão marcados para uma próxima ida.
O camping custou R$ 30,0 por pessoa/dia, não tem luz elétrica e nos pareceu bem equipado e estruturado. Há cozinha comunitária com fogão à lenha, banheiros com ducha fria e vários sanitários. Tudo limpo e organizado. Dizem é comum que na virada do ano o camping fique lotado (e há muito espaço para barracas) e a coisa deve ficar um tanto diferente.
Dia 6 – Barco até a vila Oratório e viagem de volta
Pegamos o barco de Martim de Sá às 7h. Quer dizer, pegaríamos, se o terceiro integrante não houvesse esquecido o horário e feito todo mundo (nós, o barqueiro e seus ajudantes) esperar por mais de uma hora enquanto ele tomava banho (!) e seu nutritivo café da manhã (!!). Ao partir, infelizmente, o barco acabou atravessando de cheio uma onda grande molhando a todos e especialmente o coleguinha perfumado, que estava com o celular na mão. Coincidentemente, esse também foi um dos momentos em que se podia ver o barqueiro sorrindo largamente numa demonstração simples, mas perfeita, do que é a verdadeira felicidade. Sem qualquer rancor no coração, assim também nos sentimos.
O traslado de barco custou R$ 400,00 dividido pelos passageiros, cabendo quatro no máximo. Como éramos três, ficou em cerca de 130,0 para cada. O mar estava agitado e por isso o barco ia navegando por grandes ondas se formando. Nada extremamente perigoso, mas aquela dose bacana de adrenalina para começar o dia.
O barco nos deixou em um pequeno cais no condomínio Laranjeiras, onde é preciso esperar por uma van que nos leve à vila Oratório. Todo o cuidado para que os donos do pedaço não se misturem com a gentalha, é inacreditável.
Após atravessar esse pequeno enclave distópico, pegamos o carro e seguimos nossa longa viagem de volta. Dessa vez, escolhemos voltar à BH pela via 040 e ficamos satisfeitos com a escolha. A viagem fluiu melhor em uma estrada mais conservada (na maior parte).
Chegamos, enfim, cansados mas renovados por essa constante passagem entre o selvagem e o urbano. A região toda da Juatinga é incrível e a única certeza é a obrigação de voltar e conhecer mais e melhor a infinitude de praias, cachoeiras, picos, pessoas e costumes.